𝐑𝐞𝐠𝐫𝐞𝐬𝐬𝐨 𝐝𝐨 𝐠𝐚𝐬 𝐥𝐚𝐜𝐫𝐢𝐦𝐨𝐠𝐞𝐧𝐞𝐨 𝐚 𝐌𝐚𝐩𝐮𝐭𝐨 𝐝𝐢𝐟𝐢𝐜𝐮𝐥𝐭𝐚 𝐫𝐞𝐜𝐨𝐧𝐜𝐢𝐥𝐢𝐚𝐜𝐚𝐨

𝐑𝐞𝐠𝐫𝐞𝐬𝐬𝐨 𝐝𝐨 𝐠𝐚𝐬 𝐥𝐚𝐜𝐫𝐢𝐦𝐨𝐠𝐞𝐧𝐞𝐨 𝐚 𝐌𝐚𝐩𝐮𝐭𝐨 𝐝𝐢𝐟𝐢𝐜𝐮𝐥𝐭𝐚 𝐫𝐞𝐜𝐨𝐧𝐜𝐢𝐥𝐢𝐚𝐜𝐚𝐨

𝐑𝐞𝐩𝐨𝐫𝐭𝐚𝐠𝐞𝐦
Manuel Carvalho (Texto) e
Manuel Roberto ( Fotografia)

A primeira granada de gás lacrimogéneo rebentou de
surpresa e em instantes o nervosismo e o cheiro a pólvora deixaram uma das avenidas da Baixa de Maputo em estado de sítio. Erguendo-se da janela do tejadilho de um jipe enorme,
Venâncio Mondlane, rodeado por umas largas dezenas de apoiantes, seguiu a marcha em direcção ao mercado da Estrela, onde a polícia de choque travou a marcha triunfal com mais gás. Desta vez, houve fumo, pólvora e lágrimas, mas não houve vítimas a somar aos mais de 400 mortos contabilizados nos últimos seis meses de conflito político.

Ainda assim, o episódio de ontem de manhã na Baixa de Maputo mostra que o aperto de mão entre Mondlane e o Presidente eleito pela Frelimo, Daniel Chapo, e os apelos à reconciliação estão longe de quebrar a tensão. Moçambique, a braços com uma crise económica e social aflitiva, continua suspenso de um conflito político.

O rastilho do episódio de ontem começa a arder de manhã cedo com a idade Venâncio Mondlane à sede da Procuradoria-Geral da República para prestar declarações na sequência de várias acções judiciais que o acusam, entre outros crimes, de incitamento à violência.

À saída da procuradoria, Mondlane diria que continua “sem saber do que é acusado”.

Mas nas notificações anteriores, o candidato presidencial tinha sido
responsabilizado pela vaga de destruição pela qual os tribunais reclamavam 445 mil euros. E no inquérito judicial estará também o seu apelo à Lei de Talião no auge dos protestos, em Janeiro: “Cada elemento da população assassinado por um elemento da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) automaticamente paga-se com a mesma moeda , esse elemento da UIR é varrido da existência, vai para o Inferno. E assim que a gente tem de fazer”, disse Mondlane.
Com o agravar da situação a levar à multiplicação de saques e de mortes, Daniel Chapo e Venâncio Mondlane reuniram-se duas vezes e a 23 de Março divulgaram comunicados com palavras de apaziguamento e fotografias a cumprimentar-se. Mas Mondiane avisou desde logo que o diálogo não representava o “abandono da causa”.

E a causa é a reivindicação da vitória nas eleições de 9 de Outubro. Ontem, depois de sair da PGR, Mondlane fez prova da promessa.

O quarteirão da procuradoria estava vedado ao trânsito e fortemente vigiado pela polícia, pelo que seria dificil conseguir ali uma manifestação do seu poder popular. Mas Mondlane tinha uma alternativa em mente: um passeio triunfal pelas ruas sobrepovoadas do centro.

O candidato teve de esperar alguns minutos antes de iniciar o desfile porque a janela do tejadilho do jipe não se abria.

Depois de um grupo de apoiantes ter subido para o veículo e despencado a abertura, Venâncio ergueu-se, abriu os braços e um grupo de apoiantes até ali disfarçado entre os jornalistas começou a gritar o seu nome.

Depois, o jipe desceu a Avenida Vladimir Lenine e virou à direita em direcção as ruas onde se concentra o comércio. “Esta terra é nossa/salve Moçambique”, gritavam.

Como um rio de montanha, a manifestação foi engrossando. Mulheres fardadas deixavam as lojas e juntavam-se ao coro.

Os carros apitavam.

Das varandas, as pessoas acenavam. Se as eleições fossem na Baixa, Mondlane teria ganho com ampla vantagem.

Muitos repetiam em coro o seu nome, outros preferiam chamar-lhe “Presidente”.

Até que a primeira granada rebentou.

Num ápice, as pessoas correram para as ruas adjacentes e só o grupo de fiéis ficou junto ao seu lider.

Revelando a experiência acumulada nos últimos meses, começaram a circular garrafas de água para lavar os olhos.

Uma idosa teve de ser retirada da rua e arrastada para o interior de uma loja.

Não houve pânico.

Houve revolta.”Já viu quem eles são? As pessoas estavam so a cantar e a fazer a festa, não havia problema nenhum”, dizia ao PUBLICO Joana, uma jovem com os olhos vermelhos do gás e a face ruborizada pela corrida e pela ira.

Na confusão, poucos viram o rumo do carro de Venâncio Mondiane. Vira-se apenas passar um gigantesco camião com um jacto de água e várias carrinhas de caixa aberta com soldados da UIR.”Avayhe” (ladrões em changana, a língua local), “filhos da p…”, ouvia-se a multidão à sua passagem.

Não se sabe se o trajecto de Mondlane tinha o mercado da
Estrela como destino.

Sabe-se sim que ele forçou o contacto com a multidão.

Mal o fez virando para o coração do comércio de rua da cidade, os jornalistas de Maputo, habituados aos confrontos dos últimos meses, vaticinaram: “Isto vai arder.” Não ardeu mais, garantem, porque o jipe não conseguiu chegar ao mercado, onde todas as madrugadas se hasteia abandeira da candidatura de Mondlane.

Reduto dos que vieram de todo o país à espera de uma vida melhor em Maputo e falharam, o mercado da Estrela vende de tudo.

Até armas. “Se Mondlane tivesse chega do la, teria havido sem dúvida confrontos a sério”, diz um jornalista que trabalha para um órgão de comunicação do estado português.

𝐎 𝐝𝐢𝐚𝐥𝐨𝐠𝐨 𝐪𝐮𝐞 𝐟𝐚𝐥𝐭𝐚
Bastaram apenas dois dias para que os apelos de Daniel Chapo a “reconciliação” proferidos na cerimónia solene dos 50 anos da independência do pais fossem abalados.

O clima de guerra civil está suspenso porque amainou, mas a vida política continua marca da pelo conflito . Daniel Chapo prometeu num acordo com os partidos da oposição mudar a Constituição para rever a lei eleitoral e criar um clima de transparência na vida política.

E avançou com a criação de um Conselho de Estado, para o qual Mondlane foi convidado, e para uma comissão técnica composta por 18 elementos dos partidos mais três cidadãos para avançar com “um diálogo nacional inclusivo”. Fontes ligadas a ONG ou personalidades do mundo empresarial , que pediram anonimato, acreditam que o Presidente seja sincero nas suas promessas.

Talvez porque, como disse José Chichava ao PUBLICO, membro do Comité Central da Frelimo, “ou mudamos ou caminhamos para o abismo”.

Há, no entanto, quem duvide das intenções e, ainda mais, do poder do Presidente para mudar a cultura de um partido que se confunde com o Estado h á meio século.

As celebrações da independência são disso um bom exemplo.

Se é verdade que Venâncio Mondlane foi convidado para participar nas cerimónias n o Estado d a Machava (não foi porque tinha outros compromissos de agenda, como revelou ontem), ficou evidente que toda a festa s e fez mais em tornoda exaltação da Frelimo do que da nação moçambicana.

No estádio, não foi o povo que se viu: foram alunos de escolas, ex-veteranos, membros do partido e funcionários públicos obrigados a estar presentes.

Um oficio do distrito de Magude avisava que iria haver um comboio especial para o estádio, que a sua presença na festa era “obrigatória” e quem se ausentasse tinha o dever de se “justificar por escrito à excelentíssima administradora do distrito”.
Moçambique, é quase consensual, está longe de ser um Estado autoritário como, por exemplo, Angola.

A liberdade de expressão é mais ampla, embora com limites definidos pela Frelimo.

A sua sociedade civil é mais plural. Mas sobra a dúvida sobre as capacidades da Frelimo de abrir e renovar o sistema político e a economia.

Quando o fez, foi pelo conflito ou pela pressão externa. Como aconteceu em 1992 com os acordos de paz em Roma com a Renamo que instituiram uma democracia multipartidária, Como em 1994, quando Moçambique teve de se sujeitar as regras da economia de mercado para poder receber ajuda internacional do Banco Mundial e do FMI.

No essencial, pouco mudou. A Frelimo conservou o poder político. E em Moçambique há a convicção de que quem ganhou com a abertura económica foram as suas elites.

Foram os militantes e dirigentes da Frelimo que disputaram as melhores terras, as empresas privatizadas ou que se servem dos negócios do Estado para enriquecer com a corrupção.

Um
estudo da Confederação das Associações Económicas denuncia um modelo de compras públicas dominado pelo favor e pelo nepotismo.

Mais de 40% da economia vive da informalidade. Se 62% da população vive na pobreza, “temos um grupo de multimilionários considerável”, denuncia o filósofo Severino Ngoenha. Ao mesmo tempo que há quem acredite no potencial transformador do gás da bacia do Rovuma, onde a Total promete reiniciar os trabalhos para a exploração depois de controladas as ameaças do terrorismo islâmico, há quem sublinhe que o pais só sairá da lista dos dez mais pobres países do mundo se apostar nos seus recursos básicos.

Em especial na agricultura, onde a produtividade do milho por
hectare, por exemplo, é a mesma desde os anos de 1960 ( uma
tonelada), com o sublinha o sociólogo João Feijó, do Observatório do Mundo Rural.

Como boa parte desta situação dificil resulta dos 16 anos de guerra civil com a Renamo, seguidos de mais dez de tensão permanente, dar a volta à situação requer paz.

Paz que os conflitos políticos actuais não garantem. Hoje, já não há o poder dos suprematistas brancos da Rodésia ou da África do Sul nem a Guerra Fria a incentivar a luta de facções.

Há apenas um partido, a Frelimo, e um movimento jovem e urbano, o de Mondlane, que não se entendem no essencial: os resultados d e uma eleição.

A paralisia congela o presente de pobreza extrema e, pior, compromete o futuro.

Na independência, Moçambique tinha 10,3 milhões de habitantes, hoje tem cerca de 33 milhões e em 2050 terá, de acordo com o INE moçambicano, 65 milhões.

Para manter alguma esperança e evitar a catástrofe do crescimento populacional explosivo, Mocambique, dizem os economistas, precisa de um crescimento económico de 7% ao ano. Em 2025, esse crescimento ficará pelos 3%. Público.